Do direito à cobertura de próteses e outros materiais nos contratos de planos e seguros de saúde

Usuários de planos e seguros de saúde enfrentam problemas frequentes para obter autorização para uso de próteses e outros materiais de síntese perante operadoras de planos de saúde, tanto nos contratos chamados antigos quantos nos novos.

Os contratos de planos e seguros de saúde remontam sua origem no Brasil à década de 60 e, desde então, diversas foram as reformulações jurídicas as quais tais contratos foram submetidos, sendo que a mais relevante foi introduzida pela Lei n. 9.656/98.

A Lei n. 9.656/98 entrou em vigor no ano de 1999 e todos os contratos de planos e seguros de saúde pactuados a partir daquele ano passaram a ser denominados por contratos “regulamentados” (ou contratos novos) ao passo que os contratos anteriores à essa legislação passaram a ser chamados por contratos “não regulamentados” (ou contratos antigos).

A distinção entre contratos regulamentados e não regulamentados não ficou só na nomenclatura. Os contratos assinados sob a égide da nova legislação passaram a oferecer uma cobertura mais ampla e, também, passaram a sofrer maior fiscalização de uma autarquia criada exclusivamente para essa finalidade – a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS.

É importante, entretanto, que se tenha em mente que a Lei n. 9.656/98 surgiu para regulamentar aquilo que a jurisprudência de nossas Cortes já havia pacificado, impondo que as condutas adotadas pelas operadoras de planos e seguros de saúde observassem os preceitos do Código de Defesa do Consumidor e a boa-fé nas relações contratuais, boa-fé essa que mais tarde seria melhor conceituada no Código Civil de 2002.

Antes do advento dessa regulamentação, as operadoras de saúde privadas exigiam vantagens ainda mais excessivas de seus clientes, práticas essas que já eram coibidas pelo Código de Defesa do Consumidor mas que, ainda assim, constavam expressamente do contrato de adesão ao serviço.

Da Exclusão de Cobertura para Próteses, Órteses e Materiais de Síntese nos Contratos Antigos.

Entre outras irregularidades que podem ser encontradas nesses contratos antigos, é habitual haver cláusula expressa de exclusão para próteses, órteses e materiais de síntese, independentemente de se tratarem de materiais de cunho estético ou não.

Nesse ponto, é importante esclarecer, ainda que de forma resumida, que:

próteses têm a função de substituir a função de partes do corpo, como, por exemplo, a prótese de quadril (substitui uma articulação), a prótese auditiva (substitui a função auditiva);

órteses, por sua vez, têm a função de auxiliar a função de partes do corpo, como, por exemplo, o aparelho de marca-passo, que auxilia e complementa a função cardíaca através de impulsos elétricos; e

materiais de síntese podem ser definidos, a grosso modo, como materiais especiais que são usados para aproximar estruturas orgânicas (tecidos e ossos), dentre os quais podemos destacar placas, pinos, parafusos, hastes, entre outros.

Diante da expressa exclusão contratual de cobertura para tais materiais nos contratos antigos, os pedidos médicos para autorização de procedimentos que envolvem esse tipo de material são, até os dias atuais, autorizados apenas parcialmente pelas operadoras de saúde privada, que se limitam a autorizar as demais despesas médicas e hospitalares, glosando, todavia, o custeio da prótese, órtese ou material de síntese necessário ao êxito do procedimento.

A glosa de cobertura de tais materiais, entretanto, contraria o próprio objeto contratado pelo consumidor pois, de um lado, existe cláusula contratual que assegura a cobertura para o procedimento cirúrgico necessitado pelo consumidor e, de outro, existe cláusula que veda a cobertura para o material que justifica tal procedimento.

Uma cirurgia de colocação de prótese de quadril, por exemplo, é denominada artroplastia de quadril e tal procedimento não tem razão de existir sem a prótese. Não existe artroplastia sem prótese.

Destarte, ao negar a cobertura para o material, a operadora de saúde nega autorização para o próprio procedimento cirúrgico, cuja cobertura está assegurada na avença.

E as disposições contratuais, principalmente as impostas de forma unilateral, como ocorrem nos contratos de adesão, devem ser interpretadas sempre em favor do consumidor, conforme prevê o artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor.

A negativa de cobertura desse material também representa prática de conduta abusiva, pois exige vantagem excessiva do consumidor, nos moldes do artigo 39 da Lei n. 8.078/90.

E, sendo abusiva a cláusula que exige vantagem excessiva do consumidor, restringe direitos e obrigações contratualmente assegurados e, ainda, inerentes à natureza do contrato, nula é a sua disposição, conforme dispõe o artigo 51, IV e § 1º, II, da referida lei do consumidor.

Também deve ser observado que, conceder direito ao tratamento cirúrgico e vedar o acesso ao material necessário para propiciar o adequado atendimento demonstra flagrante defeito na prestação do serviço, tal como destaca o artigo 14 da Lei 8.078/90.

Observe que a conduta irregular das operadoras de saúde pode ser repelida exclusivamente com o Código de Defesa do Consumidor, o que demonstra que, independentemente da Lei n. 9.656/98, a postura das empresas de planos e seguros de saúde já se mostrava incorreta desde o advento da lei consumerista em 1990.

Ainda assim, os titulares de contratos antigos enfrentam, até os dias atuais, negativas de autorização de cobertura para tais materiais, prática essa coibida por incontestável jurisprudência de nossos Tribunais.

Nesse ínterim, importante destacar que o Tribunal de Justiça de São Paulo, recentemente, sumulou o entendimento de que:

“SÚMULA 93: A IMPLANTAÇÃO DE “STENT” É ATO INERENTE À CIRURGIA CARDÍACA/VASCULAR, SENDO ABUSIVA A NEGATIVA DE SUA COBERTURA, AINDA QUE O CONTRATO SEJA ANTERIOR À LEI 9.656/98.”

O entendimento sumulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo foi de fundamental importância para tornar uniforme a jurisprudência no Estado de São Paulo.

Mesmo diante de maciça jurisprudência, ainda existiam alguns (poucos) magistrados que esposavam o entendimento de que, havendo previsão expressa de cobertura de tais materiais, não haveria ilegalidade ou abusividade na glosa de cobertura.

Com a edição da Súmula 93, as decisões judiciais no Estado de São Paulo passaram a ser uniformes, ainda que Juízes e Desembargadores entendessem a matéria de forma distinta.

“Plano de saúde. Prótese. Fêmur. Restrição contratual à cobertura. Contrato anterior à Lei nº 9.656/98 e não adaptado. Cláusula restritiva lançada em termos claros e inequívocos. VALIDADE, SEGUNDO ENTENDIMENTO PESSOAL DO RELATOR.PACIFICAÇÃO ENTRETANTO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE EM SENTIDO CONTRÁRIO. APLICAÇÃO DA SÚMULA Nº 93 DO TJSP. OBRIGAÇÃO DE COBERTURA RECONHECIDA. Sentença confirmada. Apelação da ré desprovida.”

(TJSP, 2ª C. Dir. Privado, Ap. 0011369-15.2010.8.26.0010, Des. Rel. Fábio Tabosa, j. em 03/07/2012)

E, não bastasse a Súmula n. 93 acima transcrita, a Súmula n. 100, do mesmo Tribunal de Justiça, complementa o entendimento de que o titular de plano ou seguro de saúde tem direito à cobertura de órteses, próteses e materiais de síntese, seja o contrato regulamentado ou não:

“Súmula 100: O contrato de plano/seguro saúde submete-se aos ditames do Código de Defesa do Consumidor e da Lei n. 9.656/98 ainda que a avença tenha sido celebrada antes da vigência desses diplomas legais.”

Logo, também é defeso às operadoras de saúde a alegação de que o consumidor teve a oportunidade de migrar ou adaptar os termos de seu contrato antigo à nova regulamentação, sobretudo porque, quer seja o contrato regulamentado ou não, a previsão de cobertura para o procedimento cirúrgico é inequívoca e não pode, portanto, ser limitado por outra cláusula que inviabilize a execução do serviço contratado.

Importante, ainda, consignar que a extensão do direito à cobertura desses materiais encontra algumas restrições.

Assim, quando o uso desses materiais não está vinculado ao ato cirúrgico, o que implica dizer que não depende de ato cirúrgico para o respectivo implante, não está a operadora de saúde obrigada a custeá-lo. É o que se pode inferir da situação hipotética de um paciente necessitar amputar a perna, que será substituída por uma prótese externa, cujo implante não está associado ao ato cirúrgico de amputação.

Outra hipótese que permite a glosa de cobertura é àquela vinculada às próteses estéticas, tais como a prótese mamária, devendo haver a ressalva de que cirurgia estética e cirurgia reparadora tem conceitos distintos. A primeira tem por objetivo apenas a melhora da aparência estética enquanto que a segunda objetiva a reconstrução de um órgão danificado por uma lesão ou doença, como, por exemplo, o implante de prótese mamária após cirurgia de mastectomia para ressecção tumoral.

Assim, também não é lícita a glosa de cobertura para próteses vinculadas a cirurgias reparadoras, conforme disposição do artigo 10-A, da Lei n. 9.656/98.

DA LIMITAÇÃO À COBERTURA DE PRÓTESES, ÓRTESES E MATERIAIS DE SÍNTESE NOS CONTRATOS NOVOS.

Conforme mencionado, a Lei n. 9.656/98 entrou em vigor no ano de 1999. Quase 15 (quinze) anos após o advento da referida lei, ainda existem muitos contratos de planos e seguros de saúde anteriores a essa normativa e que não foram migrados ou adaptados a ela.

A ANS tem se empenhado em promover o incentivo à migração ou adaptação desses contratos.

Em 2001, através da Medida Provisória n. 2.177-43, reeditada pela MP n. 2.177-44, a Lei n. 9.656/98 foi alterada para compelir as operadoras de saúde a oferecerem a todos os usuários titulares de contratos antigos a possibilidade de adaptarem os termos desses contratos à nova legislação.

Essa adaptação, no entanto, mostrou-se desvantajosa para o consumidor, pois, como a ANS não institui regras claras para esse procedimento, muitas operadoras de saúde ofereciam a adaptação mediante aumento superior ao dobro do preço mensal então pago por esses usuários.

Assim, em 2011, a ANS instituiu uma nova regulamentação da matéria através da Resolução Normativa n. 254, de forma a determinar que as operadoras de saúde apliquem ajuste máximo de 20,59% (vinte vírgula cinquenta e nove por cento) para os usuários que optassem pela adaptação de seus contratos antigos.

Atualmente, a extensa maioria dos usuários de planos e seguros de saúde possuem contratos regulamentados. Em números, até dezembro de 2012, o Brasil contava com 47.943.091 (quarenta e sete milhões, novecentos e quarenta e três mil e noventa e um) usuários de planos e seguros de saúde, dos quais 7.051.660 (sete milhões, cinquenta e um mil, seiscentos e sessenta) usuários ainda são titulares de contratos antigos.i

E a porcentagem de titulares de contratos regulamentados tende a aumentar gradativamente.

Trazendo esses dados para a discussão sobre a cobertura de próteses, órteses e materiais de síntese, a primeira conclusão a se observar é que, com o crescimento exponencial da porcentagem de contratos regulamentados, a discussão acerca da cobertura desses materiais tende a ser cada vez menor, pois, afinal, os contratos regulamentados pela Lei n. 9.656/98 tem expressa e obrigatória previsão de cobertura para esses materiais.

Infelizmente, essa não é a realidade.

É preciso compreender que esse tipo de material tem custo elevado. A razão pela qual as operadoras os excluíam da cobertura nos contratos antigos decorre do alto custo desses materiais e esse valor elevado continua a impactar os resultados financeiros das empresas prestadoras de serviço na área da saúde suplementar.

Diante da obrigatoriedade da cobertura, as operadoras passaram, com o aval da ANS, a impor um outro tipo de dificuldade de acesso a esses materiais, dificuldade essa que, muitas vezes, inviabiliza a liberação do procedimento médico necessitado pelo usuário.

A razão desse óbice à liberação de materiais está na Resolução Normativa n. 211, de 11/01/2010, da Agência Nacional de Saúde Suplementar, que dispôs:

“Art. 18 O Plano Hospitalar compreende os atendimentos realizados em todas as modalidades de internação hospitalar e os atendimentos caracterizados como de urgência e emergência, conforme Resolução específica vigente, não incluindo atendimentos ambulatoriais para fins de diagnóstico, terapia ou recuperação, ressalvado o disposto no inciso X deste artigo, observadas as seguintes exigências:

VI - cobertura de órteses e próteses ligadas aos atos cirúrgicos listados no Anexo desta Resolução;

§2º Para fins do disposto no inciso VI deste artigo, deve ser observado o seguinte:

I - cabe ao médico ou cirurgião dentista assistente a prerrogativa de determinar as características (tipo, matéria-prima e dimensões) das órteses, próteses e materiais especiais – OPME necessários à execução dos procedimentos contidos no Anexo desta Resolução Normativa;

II - o profissional requisitante deve, quando assim solicitado pela operadora de plano privado de assistência à saúde, justificar clinicamente a sua indicação e oferecer pelo menos 03 (três) marcas de produtos de fabricantes diferentes, quando disponíveis, dentre aquelas regularizadas junto à ANVISA, que atendam às características especificadas; e III - em caso de divergência entre o profissional requisitante e a operadora, a decisão caberá a um profissional escolhido de comum acordo entre as partes, com as despesas arcadas pela operadora.

Desde a vigência dessa Resolução, as operadoras de saúde tem exigido que os pedidos médicos desses materiais indiquem, obrigatoriamente, 03 marcas de produtos de fabricantes diferentes, tal como determina a RN n. 211/2011, da ANS e, em muitas oportunidades, mesmo diante de 03 marcas do material, a operadoras de saúde ainda contra indicam uma quarta opção.

A ANS, com esta normativa, intencionou coibir a prática de fidelização de alguns médicos às marcas desses materiais, vedando, ainda, eventuais e possíveis ganhos ilícitos.

Toda e qualquer forma de ganho ilícito por parte de um mal profissional, seja ele médico ou não, deve, sim, ser apurada, provada e punida, se for o caso, mas a ANS não é o órgão responsável pela fiscalização dos médicos.

Mais além, ao tentar regulamentar a ação de médicos que, repita-se, não é atribuição da ANS, essa autarquia permitiu que operadoras de saúde pudessem se valer dessa normativa para dificultar e, às vezes, até impedir o acesso do usuário de planos de saúde ao tratamento que está previsto em contrato.

É evidente que a operadora de saúde empenhará seus esforços em liberar o material que representar o menos ônus financeiro e é certo que o maior prejudicado pela demora na solução dessa “disputa” travada entre médicos e operadoras de saúde é o paciente.

E também é o paciente quem mais sofrerá em razão da escolha de uma material inadequado.

Nesse ínterim, é importante esclarecer que a variação de preço entre marcas desse material pode ser muito grande e essa variação também reflete na qualidade do produto.

A Escola Politécnica (POLI) da USP desenvolveu, em 2010, um simulador do movimento humano para testar próteses ortopédicas e os resultados foram alarmantes, pois nenhuma das próteses nacionais testadas naquela oportunidade duraram mais do que 1 milhão de movimentos, o que corresponde à apenas 1 ano de uso clínicoii, enquanto que as próteses importadas e de alta qualidade apresentaram garantia mínima de 12 anosiii.

É natural que, diante de resultados tão expressivos, os médicos optem por materiais de alta qualidade e cujo custo é bem mais elevado, pois estão avaliando o bem estar físico de seus pacientes.

Além disso, ao indicar um material de baixa qualidade, seja por que desconhece um material melhor ou seja porque sofreu influência de terceiros na escolha do produto, o médico pode responder por possíveis danos causados ao paciente.

Logo, não pode a ANS criar maiores dificuldades para o usuário de planos e seguros de saúde.

A propósito, a Lei ORDINÁRIA n. 9.656/98 não instituiu nenhuma limitação ou restrição ao direito de cobertura de próteses, órteses e materiais de síntese quando ligados ao ato cirúrgico de finalidade não-estética.

Destarte, a Resolução Normativa n. 211/2010, da ANS, não tem o condão de limitar o alcance da lei ordinária n. 9.656/98, pois se trata de norma (administrativa) hierarquicamente inferior.

Na hipótese de a operadora ter motivos para acreditar que o médico esteja auferindo vantagem ilícita, existem outros meios para denunciar e punir esse profissional, mas não se pode admitir que todos os pacientes sejam prejudicados em razão da amplitude do alcance da normativa veiculada pela ANS.

Conclusão

A cobertura de próteses, órteses e materiais de síntese vinculados ao ato cirúrgico e de natureza não estética, ressalvada hipótese de cirurgias reparadoras, é obrigatória por parte das operadoras de planos e seguros de saúde, sejam os consumidores desse serviço titulares de contratos novos ou antigos.

A cláusula de exclusão desses materiais existente nos contratos antigos não se sustenta perante o Código de Defesa do Consumidor e não se pode excluir tais contratos do alcance da Lei n. 9.656/98.

Considere-se, ainda, que os contratos de planos de saúde são contratos de execução continuada e devem se submeter a lei vigente na ocasião em que surgir a demanda pelo serviço contratado.

Também não se pode admitir que a discordância entre o material indicado pelo médico assistente e aquele oferecido pela operadora de saúde prejudique o bem-estar do paciente.

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