Doença preexistente nos planos de saúde

A imprecisão conceitual na seara das doenças preexistentes é a grande causadora de confrontos que irão ser dirimidos pela Justiça.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar os aspectos legais e legitimadores que giram em torno das doenças preexistentes nos planos de saúde, temática pertinente aos nossos tempos, tendo em vista que é motivadora de um grande número de demandas que todos os anos alcançam o judiciário brasileiro. Para tanto, foi realizada uma abordagem ampla, capaz de abarcar os aspectos constitucionais ligados ao tema, algumas questões ligadas à conceituação de saúde e doença, além de análises de legislações específicas.

Ao final, verificar-se-á se a carência de cobertura para as doenças preexistentes é de fato legítima, acrescentando-se ainda uma problemática que se mostrou mais imperiosa no decorrer deste estudo: a fragilidade conceitual que circunda as doenças preexistentes nos planos de saúde.

1. Introdução

A imposição de cobertura parcial para os casos de doenças preexistentes é um tema que levanta muitos pontos controvertidos, sejam eles jurídicos ou não. O debate sobre tal questão é de extrema importância, tendo em vista o aspecto fundamental dos direitos envolvidos, sejam eles a vida, a saúde e a dignidade dos consumidores de plano de saúde.

Todos os anos, um grande número de demandas judiciais surge da alegação de doenças preexistentes nos planos de saúde. Normalmente se inicia quando a operadora de planos alega que o usuário é portador de uma doença que teria se iniciado antes da contratação do serviço. O consumidor que se sente prejudicado peticiona ao judiciário, solicitando que este se posicione quanto à existência ou não de doenças preexistentes.

O presente tema possui questões bem delicadas, oriundas dos mais distintos aspectos: É possível determinar o dia exato em que uma patologia se iniciou no organismo? O período de carência de dois anos destinado às doenças preexistentes é legítimo, ou se consiste em verdadeiro ato abusivo? A mera declaração de boa fé é um instrumento capaz de proporcionar segurança jurídica à relação de consumo?

Através de uma revisão de literatura, este artigo procurou elucidar as principais temáticas que circundam o tema das doenças preexistentes nos planos de saúde, abordando alguns contornos constitucionais sobre o assunto, os conceitos vigentes de saúde e doença, os aspectos gerais sobre a Saúde Suplementar e, por fim, uma visão jurídica sobre as doenças preexistentes.

2. Contornos Constitucionais do Tema

Como o presente estudo promove uma abordagem do direito à vida e à saúde do consumidor, torna-se de suma importância uma passagem inicial pelos aspectos constitucionais que permeiam o tema, já que a Carta Magna brasileira de 1988 eleva tais bens ao patamar de direitos fundamentais pétreos. Na verdade, desde que a Constituição deixou de ser mero documento de limitação do Estado e do poder político para se tornar instrumento balizador de todo o sistema jurídico, tornou-se impraticável analisar qualquer tema jurídico sem considerar o arcabouço de normas constitucionais que o envolve (SAMPAIO, 2010, p. 19).

Sendo a Constituição a lei máxima, a lei das leis, o fundamento último de validade de todas as normas, não se admite agressões à sua magnitude. Por isso, não apenas os atos públicos são submetidos à sua supremacia, mas também os atos praticados por particulares. Essa lógica hierárquica é proveniente do princípio da supremacia constitucional, que considera a constituição soberana dentro de um ordenamento (BULOS, 2010, p. 127). Como afirmou Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito: “A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas” (KELSEN, 2009, p. 247).

Dando seguimento à idéia de sistema jurídico, Noberto Bobbio enaltece a importância de que as abordagens jurídicas não podem se pautar em análises individualizadas das normas, pois: “(...) o Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo” (BOBBIO, 1994, p. 21).

Por fim, vale ressaltar que, mesmo que a legislação infraconstitucional não contemple a totalidade dos preceitos da Constituição, o pressuposto da máxima efetividade das normas e princípios constitucionais coloca como regra que tais preceitos têm aplicabilidade integral (já que todos os seus comandos devem ser seguidos), direta (o princípio da constituição pode ser aplicado ao caso concreto sem necessidade de criação de norma intermediária) e imediata (pode-se aplicar os dispositivos constitucionais desde a publicação dos mesmos) (FRANCISCO, 2007, p. 21).

Mesmo que a relação entre operadoras de planos de saúde e seus consumidores seja tipicamente privada, os direitos fundamentais que estão em jogo nesta relação jurídica precisam ser observados. Ingo Wolfgang Sarlet assevera que os direitos fundamentais não são meros direitos subjetivos do indivíduo perante o Estado. Esses dispositivos primordiais são aplicáveis a toda ordem jurídica, inclusive a privada, característica que os tornam capazes de proteger os particulares contra os atos atentatórios provindos de outros indivíduos ou entidades privadas (2007, p. 338).

Diante do exposto, o presente estudo não poderia se esquivar de uma abordagem introdutória sobre os principais temas constitucionais que orientam a defesa do consumidor de planos de saúde.

2.1. Dignidade da Pessoa Humana

A Constituição Federal de 1988 prevê, em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro. A dignidade é o valor primordial de toda sociedade para o qual se reconduzem todos os direitos fundamentais da pessoa humana (CUNHA JÚNIOR, 2009, p. 527). Segundo Manoel Jorge e Silva Neto (2009, p. 268), a dignidade da pessoa humana “é o fim supremo de todo o direito”; “é o fundamento maior do Estado brasileiro”.

Seu valor no ordenamento constitucional deve ser considerado legitimador de toda e qualquer atuação estatal e privada, individual ou coletiva. É a dignidade, portanto, a balizadora da interpretação do ordenamento jurídico brasileiro, proporcionando-lhe racionalidade sistemática (pelo fato de possuir proeminência axiológica-normativa sobre os demais princípios). Deste modo, a dignidade da pessoa humana fornece ao intérprete uma pauta valorativa essencial ao correto entendimento e aplicação da norma. (RIVABEM, 2012, p. 8).

A Declaração Universal da ONU (de 1948) talvez seja o documento que, de forma concreta, nos forneça as bases para a formulação do conceito de dignidade da pessoa humana (NICOLAO, 2012, p. 9). Logo em seu artigo 1º, a Declaração dispõe: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (NAÇÕES UNIDAS, 2010).

Ingo Wolfgang Sarlet acredita que a dignidade é um conceito em permanente processo de construção e desenvolvimento (SARLET, 2002, p. 40), descrevendo-a de forma mais genérica como:

(...) qualidade intrínseca e inseparável de todo e qualquer ser humano. Mais que isso: é característica que o define como tal. A condição humana, independente de qualquer outra particularidade, torna o ser humano como titular de direitos que devem ser respeitados pelo Estado e por seus semelhantes (SARLET, 2002, p. 22).

Frisa-se que a dignidade não é uma criação jurídica, tratando-se de algo que antecede qualquer experiência especulativa (SILVA NETO, 2009, p. 268). Além disso, uma vez tendo adentrado no sistema jurídico, ela se torna um princípio aberto, não taxativo, possuindo muitos significados e efeitos (RIVABEM, 2012, p. 9), dificultando o estabelecimento de definições mais precisas. A dificuldade de se delimitar o significado de dignidade humana não impede, porém, que na prática social se possam apontar suas violações (RIZZATTO NUNES, 2004, p. 26).

Como princípio constitucional, a dignidade tem aplicabilidade direta e imediata sobre o caso concreto. Contudo, por mais que tenha proeminência axiológico-normativa sobre os demais preceitos constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana não pode desconsiderá-lo, aliás, nenhum princípio é absoluto. Devem eles ser aplicados harmonicamente, a partir da ponderação de seus fundamentos, respeitando a noção de unicidade do ordenamento jurídico.

2.2. Direito à vida e à saúde

O caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a “inviolabilidade do direito à vida”. Trata-se do direito de permanecer vivo, proibindo a interferência nos processos vitais que possam resultar em morte (DIMOULIS, 2007, p. 397). A vida é o pressuposto de todos os demais direitos (SAMPAIO, 2010) e por isso é considerada um bem jurídico de valor elevado. A conservação da vida humana é um direito inato, adquirido no nascimento, portanto, intransmissível, irrenunciável e indisponível (ROBERTO, 2012, p. 4).

O significado constitucional do direito à vida é amplo, pois ele se associa com outros bens jurídicos, a exemplo dos direitos à liberdade, igualdade e à dignidade (BULUS, 2010, p. 529). Considerar a vida como um bem jurídico desconectado dos direitos fundamentais que a cercam é limitar o ser humano a uma existência meramente biológica, afastando dele os aspectos sociais, psicológicos e espirituais, tão imprescindíveis à sua felicidade. A vida constitucionalmente referida não é uma vida qualquer. Seu conceito se apóia em outra definição constitucional, que é a da dignidade (ROBERTO, 2012, p. 8). Assim surge o conceito de vida digna, que estimula o esforço da sociedade no sentido de não apenas ser direcionado à subsistência da espécie, mas, acima de tudo, à busca da qualidade de vida.

Se a vida é o pressuposto de todos os demais direitos, a saúde é o pressuposto da vida. Sem saúde não há vida digna, não há trabalho, não há cidadania, há apenas resquício de vida (SILVEIRA, 2009, p. 17). A saúde também garante as condições necessárias à fruição dos demais direitos, fundamentais ou não, inclusive no sentido de viabilização do livre desenvolvimento da pessoa e de sua personalidade (SARLET, 2012, p. 5). Por ser tão primordial à existência digna dos homens, o ordenamento jurídico brasileiro, através do artigo 6º da Constituição Federal, elevou a saúde à condição de direito social.

O direito à saúde, na qualidade de direito social, exige do Estado brasileiro a realização de ações concretas e efetivas para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde de sua população. O Estado, então, possui o poder/dever de intervir na dinâmica social para a proteção da saúde coletiva. O direito à saúde pode ser também considerado um direito subjetivo público, na medida em que permite que o cidadão ingresse com uma ação no Poder Judiciário para exigir do Estado ou de terceiros responsáveis legalmente a adoção ou a abstenção de medidas concretas em favor da saúde (BRASIL, 2006, p. 50).

Nesse sentido, o artigo 196 da Constituição Federal dispõe:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Nem sempre, porém, a saúde foi objeto de proteção jurídica. Ao longo da história, o cuidado sanitário esteve ligado a questões místicas ou divinas, associada à prática de virtudes como a caridade e a compaixão (GLOBEKNER, 2009, p. 5962). Acreditava-se que as decisões humanas não tinham capacidade de modificar o curso natural das doenças, concepção que fazia da saúde um objeto dissociado do mundo jurídico.

Com o desenvolvimento técnico científico ocorrido na Revolução Industrial, inúmeros fatores físicos, químicos ou biológicos foram identificados como capazes de afetar a saúde humana. Percebeu-se que a manutenção de um razoável estado de saúde seria fruto da interação entre esses fatores e o comportamento humano, englobando tanto hábitos particulares dos indivíduos quanto a própria estrutura social e política em que eles estão inseridos. A saúde passou a ser um bem disponível no mercado, e frisa-se: um bem de escassez moderada, demandando critérios de justiça para a sua distribuição (GLOBEKNER, 2009, p. 5962).

Como todo bem que apresenta certo grau de escassez, a saúde pode vir a ser alvo de conflitos potencialmente danosos ao ser humano, conflitos que poderiam até mesmo comprometer o desenvolvimento das sociedades. Diante de tal relevância pública, diversos países do mundo passaram a direcionar o maquinário estatal para o cuidado da saúde de suas populações, buscando meios efetivos de gerir os recursos assistenciais. Até meados do século XX, contudo, as políticas sanitárias eram prestadas pelo Estado por razões estritamente econômicas, já que as doenças poderiam comprometer a atividade produtiva de uma nação. A saúde não era concebida como um direito do indivíduo e por isso não se obtinha em seu favor tutela específica do ente estatal relacionado a um direito fundamental (BORGES, 2011, p. 102).

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, documento internacional que inovou a concepção de direitos humanos, reconheceu a essencialidade da saúde para a construção da vida digna que o mundo almejava no pós-guerra. Essa declaração introduziu a saúde no hall dos direitos fundamentais dos países signatários, afirmando que todas as pessoas têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis (UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS, 1997a). Pelo fato da saúde ser tão essencial ao desenvolvimento econômico e social das sociedades, o Estado passou a concentrar a responsabilidade pela sua promoção.

O predomínio estatal na área de assistência sanitária não resistiu à sucumbência do Welfare State ocorrida na segunda metade do século XX. O sistema público de saúde foi acusado de comprometer as finanças do Estado, além de ser considerado um obstáculo ao crescimento da riqueza. O discurso neoliberal provocou imensas repercussões na tutela jurisdicional do direito à saúde, na medida em que a saúde humana foi adquirindo aspectos de “mercadoria”. Sob essa visão, o desenvolvimento médico-científico não seria voltado necessariamente para uma maior racionalidade sanitária, mas principalmente para a exploração econômica. O incremento tecnológico visando a lucratividade tornou a assistência à saúde mais onerosa, sem necessariamente trazer benefícios à saúde pública. Ações sanitárias caracterizadas por alocar recursos de forma mais rentável, buscando menores custos e maiores benefícios, foram sendo substituídas por estratégias advindas dos interesses do setor privado (GLOBEKNER, 2008, p. 3.775).

O cuidado com a saúde, bem de importância primordial para a consolidação da dignidade humana, foi se tornando cada vez menos eficaz, mais custoso e, por isso, mais escasso. E é claro que, quanto mais escasso é um bem jurídico, mais difícil ele será tutelado pelo Estado.

Daí surge questão paradoxal: como pode o Estado se obrigar a prover os cuidados com a saúde de sua população, se os recursos capazes de realizar tal feito não estão todos ao seu alcance? Se a incorporação de tecnologias torna a saúde um bem cada vez mais difícil de ser distribuído equitativamente para a população? Para tentar suprir tal deficiência, as nações do mundo se dividiram entre dois paradigmas de sistema de saúde. Um dos paradigmas se baseia na alocação de recursos por parte da iniciativa privada, no qual ao Estado só cabe regular o mercado e realizar ações assistencialistas específicas. O segundo paradigma se refere à atenção universalista provida pelo Estado, que direciona o sistema público de saúde a toda a população (GLOBEKNER, 2008, p. 3.775). Independente do paradigma adotado, os países optam por sistemas híbridos, que comportam a participação do setor privado na promoção da saúde, seja de forma preponderante ou não.

A exploração econômica do serviço privado tem sido vista como necessária para suprir as deficiências da atuação estatal, seguindo a lógica do discurso neoliberal vigente na contemporaneidade. Seguindo essa linha de pensamento, a Constituição Federal brasileira de 1988 consagra o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde como um direito de cidadania (BORGES, 2011, p. 103), mas, por outro lado, permite que a iniciativa privada possa prestar serviços de assistência à saúde ou, até mesmo, fazer parcerias com o setor público, participando de forma complementar do sistema único de saúde.

Não foi apenas na realidade brasileira que o passar de algumas poucas décadas tornou clara uma constatação: as problemáticas advindas da má qualidade da prestação dos serviços de saúde não são inerentes ao setor público. A iniciativa privada, erigida basicamente sobre os planos privados de saúde, frequentemente encontram dificuldades relacionadas a recursos relativamente escassos diante das demandas de seus clientes. Na verdade, a mesma incorporação tecnológica exponencial que fundamentou a participação crescente de agentes privados na prestação de serviços de saúde acaba por prejudicar a sua sobrevivência. Como resultado disso, notou-se o surgimento de inúmeros conflitos entre os planos de saúde e seus consumidores que perduram até os dias atuais, principalmente oriundos das constantes elevações dos valores contratuais e das restrições de cobertura assistencial (SILVEIRA, 2009, p. 64).

Após essa apresentação geral sobre algumas das particularidades do direito à saúde, chega-se a duas percepções imediatas. A primeira delas se refere ao problema da alta onerosidade existente no modelo assistencial da saúde adotado, marcado por que alto incremento tecnológico, sem necessariamente provocar elevação proporcional nos padrões de saúde da sociedade. A revisão desse modelo não está entre os objetivos do presente estudo, mas compreender sua dinâmica é importante para se verificar que, conforme as particularidades do caso concreto, a cláusula da reserva do possível pode limitar a tutela do direito à saúde quando os tratamentos médicos indicados estiverem além dos limites financeiros das empresas ou do setor público. Frisa-se que, não adianta existir possibilidade jurídica enquanto a aplicação de uma tutela não for revestida também de possibilidade fática (GLOBEKNER, 2008, p. 3.779).

Da segunda percepção decorre um dos fundamentos que baseiam a temática deste estudo. Trata-se da necessária interferência pública no setor privado de assistência à saúde. Sem dúvida, embora a saúde seja inegavelmente um direito subjetivo público, é equivocada a concepção que a coloca exclusivamente nessa situação, já que este direito manifesta sua atuação também na relação entre os particulares (SAMPAIO, 2010, p. 53). Importante mencionar que a saúde é dotada de grande relevância pública, por ser um bem jurídico indispensável ao desenvolvimento social e econômico de toda uma nação. Com base em sua fundamentalidade, a Constituição Federal de 1988 dispõe que a iniciativa privada atuante na área da saúde está sujeita a normas, controle e fiscalização do poder público (WEICHERT, 2007, p. 343). Dentre as ferramentas que consubstanciam a atuação do Estado na esfera privada, o Direito do Consumidor tem sido uma das mais importantes para a proteção da saúde dos usuários de serviços particulares. Os princípios da defesa do consumidor promovem subsídios para a aplicação de tutelas nos casos concretos onde a saúde das pessoas está sendo ameaçada pela exploração econômica desenfreada do mercado. Compreender o delineamento constitucional das relações de consumo, por isso, é o tema do tópico que se segue.

2.3. Defesa do consumidor

O legislador constituinte de 1988 inseriu a defesa do consumidor no rol de direitos fundamentais do sistema jurídico brasileiro, sendo que a Carta Magna dispõe em seu artigo 5º, inciso XXXII: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Reconhece-se, portanto, que o consumidor é um sujeito de direito especialmente fraco nas suas relações com os fornecedores, principalmente em tempos atuais, onde ocorre massificação imposta pelo sistema de produção e consumo na atualidade e concentração de fatias do mercado nas mãos de algumas poucas corporações (SAMPAIO, 2011, p. 54).

Referida preocupação é também encontrada no dispositivo elencado no artigo 170, que trata da ordem econômica. Mesmo dispondo que a atividade econômica se funda na livre iniciativa, deve observar determinados princípios fundamentais, dentre eles, a defesa do consumidor.

Finalmente, o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estipula que 120 dias após a promulgação da Constituição, o Congresso Nacional deveria elaborar um Código de Defesa do Consumidor (CDC), algo que só ocorreu dois anos depois (GRINOVER, 2004, p. 22).

Os mecanismos jurídicos de proteção dispostos no CDC são aplicáveis às relações de consumo, ou seja, nas relações estabelecidas entre consumidores e fornecedores de produtos ou serviços. Cabe ao presente estudo, portanto, delimitar o sentido jurídico de consumidor e fornecedor. O CDC determina no caput de seu artigo 2º: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. O conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração apenas o personagem que no mercado de consumo adquire bens e contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de outra atividade negocial (GRINOVER, 2004, p. 27).

Uma corrente de doutrinadores, por outro lado, defende que o caráter econômico não foi o único adotado pelo CDC para conceituar o que seria consumidor, agregando também a perspectiva da vulnerabilidade deste em relação ao fornecedor (SILVEIRA, 2009, p. 27). A vulnerabilidade decorre do fato de o fornecedor possuir domínio de tecnologia e informação dos seus produtos ou serviços, apresentando força desproporcional quando surge um conflito com consumidores. Aurisvaldo Sampaio lembra, contudo, que a vulnerabilidade não é um critério legal para a definição de consumidor, mas surge como conseqüência da relação de consumo (2011, p. 112).

O conceito jurídico de fornecedor perpassa por menos polêmicas, sendo que a compreensão predominante gira em torno da definição extraída do artigo 3º, caput, do CDC:

Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Entende-se que fornecedor é qualquer pessoa física ou jurídica que, mediante desempenho de atividade civil ou mercantil, e de forma habitual, ofereça no mercado produtos ou serviços (SILVEIRA, 2009, p. 27).

Para fins de desenvolvimento do estudo, é importante perceber que uma entidade associativa cujo fim é a prestação de serviços de assistência médica, cobrando para tanto mensalidades ou outros tipos de contribuição, não resta dúvida de que será fornecedora desses mesmos serviços. Já que se destina à prestação de serviços, e não à gestão da coisa comum, suas atividades se revestem da mesma natureza que caracterizam as relações de consumo. E, em conseqüência, pressupõem um fornecedor, de um lado, e uma universalidade de consumidores, de outro (GRINOVER, 2004, p. 46).

A conceituação de serviço se encontra no § 2º do mesmo artigo 3º: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. Os serviços em geral são atividades e benefícios que têm como escopo satisfazer uma necessidade do adquirente ao serem colocadas no mercado de consumo (SILVEIRA, 2009, p. 28). De modo mais objetivo: são atividades, benefícios ou satisfações que são oferecidos à venda (GRINOVER, 2004, p. 48).

fonte: JUS.COM.BR